Apresentação Dossiê 2023

 

Amor, performance e educação em perspectiva crítica

 

O amor em sala de aula prepara professores e alunos para abrir nossas mentes e corações. É o alicerce sobre o qual cada comunidade de aprendizagem pode ser criada.(...) O amor sempre nos afastará da dominação em todas as suas formas. O amor sempre nos desafia e nos muda. Este é o coração da questão. (hooks, 2003, p. 137)

As reflexões sobre o amor margeiam continentes distintos, tempos distantes e os mais diferentes corpos e contextos. Por tanto tempo pensou-se ser este apenas um sentimento e que deveria estar distante de qualquer atividade racional e objetiva. A intelectual negra bell hooks transforma e amplia as margens do que entendemos por amor. A autora sul estadunidense conseguiu abordar em seus mais de 40 livros temas como racismo, feminismo, cultura, educação, evidenciando como a dimensão política atravessa todos esses elementos, como o amor tem a capacidade de enfrentar os diferentes sistemas de opressão, conectar a mente e o corpo, contribuir com as aprendizagens, formar comunidades que considerem e viabilizem a possibilidade de transformação social em busca de equidade e justiça. Nascida em 25 de setembro de 1952, em Hopkinsville, Kentucky, EUA, bell hooks elaborou suas reflexões e produções de modo a considerar a própria experiência, a vida pulsante em si, as vidas de quem a gerou e das demais pessoas que constituíam sua rede.  Essa vida pulsante, para bell hooks, considera o ser numa perspectiva holística em que a racionalidade não se aparta da subjetividade. Portanto, atos de perceber a si, dar atenção para a linguagem, para a atuação, para os processos de ensino e aprendizagem, estão imbricados com a constituição do sujeito e por isso embebidos em afeto e em amor.

A concepção de amor para hooks não se relaciona com ideia romantizada e exclusivamente ligada ao sentimento. Para ela,  o amor é uma combinação entre o cuidado, o conhecimento, a responsabilidade,  o respeito, a confiança e o compromisso (hooks, 2021). Este amor precisa, inclusive, estar presente dentro dos espaços de educação. Há que se ter prazer e entusiasmo para aprender e ensinar. Assim, a partir do amor, envolvendo ainda o prazer, o entusiasmo e o bem-estar, é possível o enfrentamento à cultura do medo, cultura esta que ceifa potencialidades de vidas e sonhos (hooks, 2013). A educação nesta perspectiva transformadora foi inspirada por Paulo Freire. Em seu livro “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade” hooks relata (2013, p. 15): “quando descobri a obra do pensador brasileiro Paulo Freire, meu primeiro contato com a pedagogia crítica, encontrei nele um mentor e um guia, alguém que entendia que o aprendizado poderia ser libertador”. Com isso, a sua prática pedagógica pode ser pensada por bell hooks e, ao reconhecer as limitações das teorias e intelectuais que a inspiraram, considerou no  budismo elementos necessários para pensar a partir de uma perspectiva holística, bem como perceber o prazer e o entusiasmo. A intelectual negra disse ainda que “ensinar é um ato teatral. (...) Para abraçar o aspecto teatral do ensino temos que “(...) pensar na questão da reciprocidade” (hooks, 2013, p. 21-22). Sendo a reciprocidade um dos elementos para uma prática amorosa que ajuda a perceber não apenas os espaços educativos, como também os tantos outros que professores/as, estudantes, artistas, pesquisadores/as ocupam.  A ética do amor oferece um modelo para a sobrevivência e autodeterminação negra, restabelece o sentido de liberdade, a esperança e as possibilidades de ver e ser.

Inspiradas/os por bell hooks e percebendo que as produções da intelectual negra estavam cada vez mais presentes nas pesquisas realizadas no  Núcleo de Pesquisa e Investigação Cênica Coletivo 22  (NuPICC), em 2023 o grupo decidiu aprofundar nas leitura e debates a partir de três livros i)  “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade” ; ii) “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”; iii) “E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo”. Em reuniões os livros foram debatidos na íntegra e, mesmo diante das diferentes áreas de formação (dança, educação física, teatro, música e ciências biológicas, por exemplo), em uníssono, o grupo afirmava a relevância das obras e a correlação com seus contextos de trabalho. Portanto, diante deste cenário, nasce a nona edição da Revista Mosaico, com o dossiê intitulado Amor, performance e educação em perspectiva crítica. Leitores/as irão encontrar aqui produções acadêmicas no formato de ensaios e cartas que evidenciam experiências individuais ou coletivas sobre o tema, assim como produções artísticas  e poéticas. Além disso, encontrarão também resultados de pesquisas acadêmicas realizadas no âmbito deste grupo de pesquisa, confluindo com o campo da performance negra.

Na série Visualidades, foi possível contar com as produções artísticas de Flávia Cristina Honorato dos Santos duas obras fotográficas intituladas “Notas sobre o amor”, abrindo portanto os caminhos para percebermos com atenção os elementos minuciosos que podem constituir o amor.

Já na série Escritas poéticas, este dossiê contou com a contribuição de Cláudia Cardoso Barreto que em sua produção “Brincadeira de narrar, rimar e atear: um jeito de ser Coletivo venho apresentar”, a autora brinca com as palavras e narra de modo atento e afetuoso o grupo Coletivo 22.

Em tons poéticos, Marlini Dorneles de Lima (Indaiá), Eunice Pirkodi Caetano Morais Tapuia, Thiago de Lemos Santana escrevem "Ensaio poético sobre espetáculo Cartas ao Tempo", articulando tempos distintos e mantendo vivo o ímpeto de perceber e lidar com a diferença a partir do espetáculo do grupo de dança Diversus, Cartas ao tempo.

Entre as diferentes formas de expressão, a linguagem e a escrita foram refletidas e referidas no texto poético produzido por Inaê Puri. Intitulado “O jeito que os avós falam”, o texto considera caminhos de resistência para a língua, a escrita, a fala em contextos que até pouco tempo atrás não consideravam a presença de indígenas como, por exemplo, as universidades.

Para encerrar esta seção poética, Luana Medeiros, em conexão com a dimensão ancestral, contribuiu com produção intitulada “Sagrado terreiro do coração”, levando o/a leitor/a a sentir em si o que há de sagrado que faz o coração pulsante. 

A série Escritos e rabiscos foi composta por artigos acadêmicos, ensaios e cartas. As Escritas em artigos contou com o trabalho escrito por Renata Kabilaewatala e Joana Abreu intitulado “Levantamento do mastro para São Benedito: processos de incorporação de vivacidade cultural”. O/a leitor/a encontrará um relato de experiência a partir do levantamento do mastro de São Benedito, com reflexões sobre a criação de uma esfera ritualística a partir de uma escrita performativa.

As autoras Sarah Lopes de Oliveira e Renata Kabilaewatala contribuíram com artigo científico intitulado “Em que ‘pé’ está o ensino da capoeira nas escolas?”, questionando o modo pelo qual a capoeira tem sido ensinada dentro do contexto de educação formal e evidenciando a necessidade em atentar-se para uma formação que afirme e contribua positivamente para identidade negra.

No âmbito dos Ensaios, o/a leitor irá encontrar trabalho intitulado “As máscaras da Folia de Reis na encruzilhada entre a dança e o teatro”, escrito por Renata de Mello e Renata Kabilaewatala. Esta produção contribui para ampliar evidências acerca das articulações entre dança e teatro a partir da máscara do palhaço da Folia de Reis.

Ainda entre os ensaios, este dossiê contou com a produção intitulada “Escrita em busca de terra”, de autoria de Warla Giany de Paiva. A autora, a partir da própria trajetória, relata espaços em que foi possível refletir e construir contextos amorosos, contribuindo com “comunidades que alimentam a vida” (hooks, 2021, p. 161).

A partir de escritas em Cartas, o autor Ismael Silva Rattis provoca questões relevantes a partir da conexão entre dois conceitos - necropolítica e musicalidades. Em seu trabalho intitulado “Necromusicalidade(s) – tensões, conflitos, resistência e memória negra” o autor indica que os gostos musicais e o direito ao acesso e produção não são tão espontâneos quanto podem se pensar. Assim, Ismael Rattis imprime autenticidade em sua produção ao indicar caminhos para romper com a política de morte, caminhos para a vida.

Em “Um momento com Ngunga”, a autora Karinna Carla Carvalho de Menezes (Tunanjere) dialoga com Ngunga, personagem do livro de Pepetela. Ngunga, jovem angolano, percorre diferentes kimbos em meio à guerra civil. A autora (Tunanjere), reflete sobre o amor, as tensões e opressões que podem constituir subjetividades e definir caminhos, bem como enfatiza elementos como alegria, coragem e companheirismo nas trajetórias de quem ama.

Wellington Campos da Silva (Ngunga) e Wânia Borges escrevem “Carta pra Mãe Hilda França de Ọ̀ṢUN”, levando notícia a uma ancestral sobre como seu modo de estar no cotidiano, com encanto e amorosidade, influenciou a trajetória de quem escreveu tal carta. O cenário é terreiro de candomblé, com lembranças que atravessam desde a tenra idade da autora/autor e que deixam marcas resistentes no coração de quem escreveu.

Por fim, Tata Ngunzetala escreve uma carta direcionada ao/à leitor/a, intitulada “Expectativas diaspóricas”. Nesta carta, o autor descreve elementos que presenciou neste e no outro lado do Atlântico, conectando experiências comunitárias de cuidado e resistência, de afeto e transformação.

Que ao adentrar neste dossiê, quem lê possa sentir e aprofundar-se no coração da questão: o amor, a performance e a educação como caminhos para transformação social, para formação crítica e engajamento. Como  cantou Lauryn Hill em “The Miseducation”

 

“And deep in my heart (E no fundo do meu coração)

The answer, it was in me (A resposta estava em mim)

And I made up my mind (E fiz minha mente)

To define my own destiny (Definir o meu próprio destino)

And deep in my heart (E no fundo do meu coração)

The answer it was in me”  (A resposta, ela estava em mim)

Que seja possível encontrar no fundo do coração a resposta para este que nos parece central diante de qualquer transformação e busca por justiça social: o amor. 

 

Thatianny Alves de Lima Silva (Mukongotawa)

 

 

HOOKS, bell. Heart to heart: teaching with love. In: ______. Teaching community: a pedagogy of hope. New York: Routledge, 2003, p. 127-137.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante. 2021.

 

Sumário Dossiê 2023

 

Visualidades

Notas sobre o amor (I)

                Flávia Cristina Honorato dos Santos 

Notas sobre o amor (II)

                Flávia Cristina Honorato dos Santos 

Escritas poéticas

Brincadeira de narrar, rimar e atear: um jeito de ser Coletivo venho apresentar

                Cláudia Cardoso Barreto

Ensaio poético sobre o espetáculo Cartas ao Tempo 

Marlini Dorneles de Lima (Indaiá), Eunice Pirkodi Caetano Morais Tapuia, Thiago de Lemos Santana escrevem

O jeito que os avós falam

Inaê Puri

Sagrado terreiro do coração

          Luana Medeiros

Escritos e rabiscos Escritas em artigos

Levantamento do mastro para São Benedito: processos de incorporação de vivacidade cultural

Renata Kabilaewatala e Joana Abreu

Em que “pé” está o ensino da capoeira nas escolas?

Sarah Lopes de Oliveira e Renata Kabilaewatala

 

Escritas em ensaios

As máscaras da Folia de Reis na encruzilhada entre a dança e o teatro

          Renata de Mello e Renata Kabilaewatala

Escrita em busca de terra

Warla Giany de Paiva

Cartas

Necromusicalidade(s) – tensões, conflitos, resistência e memória negra

Ismael Silva Rattis

Um momento com Ngunga

Karinna Carla Carvalho de Menezes (Tunanjere)

Carta pra Mãe Hilda França de Ọ̀ṣun

Wellington Campos da Silva (Ngunga) e Wânia Borges

Expectativas diaspóricas

          Tata Ngunzetala