Diários de Travessia e Outros Contos
Em sua décima edição, a Revista Mosaico – Escritos e Rabiscos do Núcleo de Pesquisa e Investigação Cênica Coletivo 22 traz alguns vestígios de processos de ensino-aprendizagem, aqui tratados como travessias, experiências inscritas no corpo e a partir dos fluxos dos encontros.
Em seu caráter próprio de encontro, o NuPICC, como entroncamento de trieiros de diferentes fazeres culturais e espaços de construção de conhecimento, no ano de 2024, pôde experimentar de forma especial a ideia de travessia, em algumas ações que merecem destaques. Ações tais como a disciplina “Artes da Cena e Diáspora Africana” que foi oferecida pela primeira vez no primeiro semestre de 2024, destinada aos alunos do Mestrado em Artes da Cena da Universidade Federal de Goiás, conjugada com a disciplina Tópicos Especiais do Programa de Pós-graduação em Performances Culturais da mesma universidade.
Com base na ementa, cuja proposta é o “estudo das manifestações cênicas e performáticas da diáspora africana no Brasil, abrangendo festejos, rituais tradicionais e suas influências nas práticas pedagógicas e artísticas contemporâneas”, o plano de ensino da disciplina buscou aproximar os estudantes de saberes e práticas tradicionais das performances negras em geral. A aproximação se deu por meio do debate de conceitos fundamentais como diáspora africana, ancestralidade e racismo, bem como da discussão sobre “gramáticas das corporeidades afrodiaspóricas”, conforme proposição de Júlio Tavares (2020).
Além do mais, foram propostas práticas corporais com jongo paulista e com brincadeira de caixas - cacuriá e caroço - do Maranhão e uma aula com Mestre Agnaldo Roberto Aguinaldo Silva, do cavalo marinho Estrela de Ouro, de Condado/PE, por meio da parceria com o projeto de extensão do curso de Dança do Instituto Federal de Goiás - “Saberes de Mestres e a cena contemporânea” – coordenado pela professora Tainá Barreto, que inclusive participou da disciplina na condição de estudantes de doutorado e que também é parceira do NuPICC.
A partir da leitura do livro Terceira diáspora, culturas negras no mundo atlântico, de Goli Guerreiro (2010), sobre movimentos migratórios e culturais contemporâneos das populações africanas - discutida considerando o contexto da globalização, do pensamento decolonial e das resistências culturais - foi sugerida aos discentes da turma a escrita de um “diário de navegação”, estimulada pelo próprio layout do livro. No caso a “navegação” aqui é tanto metáfora de diáspora, das travessias atlânticas que engendram as poéticas afro-ameríndias, mas também da aventurança pelos territórios do saber, que exigem uma postura ainda mais investigativa e crítica, quando se trata de saberes subalternizados historicamente. Alguns desses diários compõem a primeira seção desta edição da revista intitulada: Diários de Travessia.
Todavia, outros casos também são contados e refletidos nesta edição. Na segunda seção, apresentamos cartas produzidas em uma disciplina ministrada na Universidade Federal da Paraíba, vinculada ao projeto Poéticas Afro-ameríndias no Ensino Superior, envolvendo a Universidade Federal de Goiás e a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e aprovado pelo edital CNPq/MCTI Nº 10/2023 - Faixa B - Grupos Consolidados / Universal 2023.
Tanto o projeto acima citado, como as disciplinas pautam-se na ideia de que, tendo em vista a dificuldade histórica da universidade em dialogar com saberes e fazeres tradicionais de forma não objetificada, e a importância desses conhecimentos para construção de novos paradigmas para educação e para as artes, é necessário propor a efetivação da inserção epistêmica afrobrasileira e indígena, como forma de superação do racismo epistemológico e de promoção de justiça sócio-cognitiva. Uma das principais bases metodológicas do projeto é fomentar o contato com mestres e mestras tradicionais em disciplinas ministradas na UFG, na UEMS e na UFPB, incluindo visitas às suas comunidades, quando possível. A experiência na UFPB foi a primeira no projeto e deixa como registro, além de documentários, cartas remetidas aos futuros discentes das disciplinas que acontecerão na UFG e na UEMS pelo mesmo projeto.
Ainda em atenção às percepções de discentes em disciplinas que abordam as poéticas afro-ameríndias, esta seção abriga uma narrativa semi-ficcional escrita por uma estudante a partir de seu inventário pessoal, na disciplina de Metodologia de Ensino e Pesquisa em Dança: Poéticas Populares e Afro-ameríndias.
A terceira seção retoma a ideia de travessia e reúne cartas de participantes no NuPICC que se encontram em intercâmbio acadêmico em Portugal e em Moçambique. Sobre o intercâmbio em Moçambique, vale mencionar que se trata de uma ação do projeto Africanidades Brasileiras e poéticas afro-ameríndias: uma ponte entre Brasil e Moçambique, desenvolvido pelo NuPICC e aprovado pelo Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento/ Capes - Edital Nº 16/2023 que tem como a objetivo promoção de bolsas de estudos para brasileiros pretos, pardos e indígenas, estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, “conferindo-lhes a oportunidade de novas experiências educacionais e profissionais voltadas à educação. A competitividade e a inovação em áreas prioritárias para a promoção da igualdade racial, do combate ao racismo, do estudo e valorização das especificidades socioculturais e linguísticas dos povos indígenas, da acessibilidade e inclusão no Brasil, e da difusão do conhecimento da História e Cultura Afro Brasileira e Indígena”.
Neste sentido, considerando o histórico do NuPICC pelo debate sobre diáspora africana e africanidades brasileiras, a possibilidade de realização deste projeto é a efetivação de uma aproximação com o território africano que permite uma redescoberta da cultura e identidade afro-brasileira e olhar, tocar e perceber a África como ela é. As primeiras impressões dos dois primeiros bolsistas do projeto são registradas nesta edição em formato de cartas.
Por fim, na tradicional seção Visualidade, da Revista Mosaico, trazemos algumas imagens do Levantamento do Mastro para São Benedito, no Espaço Cultural Águas de Menino. A primeira edição deste evento foi relatada em artigo publicado na edição anterior desta revista (2023). Assim, com o caráter de continuidade do acompanhamento e registro desse evento que envolve o toque e caixas e o tambor de crioula maranhense, que chegam no Águas de Menino a partir de muitas diásporas, significa falar sobre a travessia das poéticas afro-ameríndias pelo espaço e pelo tempo. Vale lembrar que o Espaço Cultural Águas de Menino, com suas as rodas, cortejos e gente, é um dos trieiros que constituem o entroncamento do NuPICC.
Celebremos assim a décima edição de escritos, rabiscos, cartas, poemas e imagens que, desde 2015 constroem esse mosaico. Boa leitura!
Renata Kabilaewatala e Joana Abreu
SUMÁRIO
Diários de Travessia
Alex Sander Fernandes dos Santos
Sthéfanny Melyssa Dourado Silva
Cartas sobre/a partir de Encontro de Saberes
Encontro de Saberes na UFPB - primeiras notícias - Carolina Dias Laranjeira e Ana Valéria Ramos Vicente
Histórias para serem brincadas. Brincadeiras para serem cantadas - Thais Gomes Lira
Um pouco mais de mim - Rachel Lemos Santos
Cartas de Viajantes
Visualidades
Equipe editorial:
Editoras: Renata Kabilaewatala e Joana Abreu
Diagramação: Renata de Lima Silva (Kabilaewatala)
Fotografia e design de capa: Rafael Gofer